Bacalhau: do mar à mesa de Natal

Com a consoada à porta, fomos palmilhar o percurso que o bacalhau faz desde a indústria até chegar a nossa casa. Da maior unidade de transformação do Mundo a uma fábrica familiar que começa o trabalho na Noruega. O amigo fiel não é uma ciência exata, mas Portugal conhece-o como mais nenhum país do Globo.

São montanhas de bacalhau, aos molhos sobre paletes, a trepar paredes, em corredores a perder de vista. O relógio marca 9.30 horas, numa fábrica gelada por dentro já centenas de trabalhadores – são 300 aqui – estão a bulir. Toucas, sapatos, fardas azuis a repetirem-se pelas linhas de produção. Dali, de uma unidade gigante, na Moita, com o Tejo à espreita, saem 25 mil toneladas de bacalhau processado por ano. O GPS não engana: estamos na portuguesa Riberalves. A empresa que mais bacalhau compra, processa e vende de todo o Mundo. Processa, espante-se, 10% de todo o bacalhau pescado à volta do Globo.

Chega à Riberalves dos mares da Islândia, da Noruega e da Rússia, sobretudo nos primeiros quatro meses do ano, quando a faina é mais intensa. Ricardo Alves, que com o irmão Bernardo inspirou o nome da empresa que nasceu há 36 anos, está de malas feitas para a Islândia, gosta de ir à origem, não deixa a negociação com os pescadores por mãos alheias. Afinal, “num Mundo tão desenvolvido tecnologicamente, a proximidade ainda conta”. Agarrou o negócio do pai, onde cresceu, mesmo que o desporto ainda lhe tenha passado pelo radar. Não conseguiu negar as origens, seguiu Engenharia Alimentar. E não parte para o país nórdico sem antes contar que compra mais de metade do bacalhau da empresa logo nos primeiros meses do ano. A sorte é que, nesta fábrica, tem capacidade para armazenar mais de 25 mil paletes de bacalhau salgado verde, que só começa a ser vendido agora, depois de um longo processo.

Ricardo Alves, administrador e filho do fundador da Riberalves, diz que o bacalhau demolhado ultracongelado é o futuro
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Investe 60 a 70 milhões de euros nessa altura. Vale a pena no país que mais consome bacalhau per capita. Nem precisa de fazer contas, está-lhe no sangue. “Cada português consome cerca de seis quilos por ano, o que equivale a 24 quilos de peixe vivo, é brutal.” Até ao produto final, o bacalhau pode perder metade do peso. E Portugal consome 20% do que é pescado no Mundo. “Está tudo dito”, atira Ricardo Alves, que respira amor à indústria. Que arreigado hábito o nosso de cozinhar e comer bacalhau como mais nenhum país.

Da escala às lojas

Os pés no chão de fábrica, o cheiro é intenso. Mal ali aterra o peixe, é hora de o escalar. O bacalhau percorre tapetes rolantes até cair nas mãos dos trabalhadores. Tiram-se dois terços da espinha dorsal para ganhar a forma que lhe conhecemos, limpam-se coágulos de sangue, vísceras. As mulheres estão em maioria, minuciosas, de faca e escova nas mãos, chuveiro suspenso sobre o peixe, com a agilidade de quem conta anos disto. Limpam para logo depois ser calibrado, que é como quem diz, separado por tamanhos para seguir para a maturação no sal, a cura tradicional portuguesa. Enchem-se recipientes enormes, o peixe não tem todo a mesma espessura e ainda obriga à destreza humana. Uma camada de peixe, uma camada de sal. Às vezes, o bacalhau é limpo e calibrado ainda a bordo dos navios e vai direto para a salga em câmaras frigoríficas, ali na Riberalves, empilhado até ao teto. Fica a maturar quatro, nove ou 12 meses. Quanto mais tempo de maturação, mais amarelado e maior qualidade.

Por esta altura, muito do bacalhau já saiu para as lojas. Mas se estas câmaras estivessem cheias, comenta a diretora de produção Vera Xavier – coberta da cabeça aos pés, touca, máscara, luvas, casaco -, teriam mais bacalhau do que aquele que a Islândia produz. É bem provável que o que vamos comer agora no Natal tenha chegado às fábricas há quase um ano.

Vera Xavier, diretora de produção da Riberalves, na zona de receção do bacalhau, que chega sob a forma de salgado verde
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Da maturação para a secagem. Recria-se a seca de outros tempos, que se fazia em esteiras ao sol. Só que agora é controlada. O peixe entra dentro de uma câmara, 24 graus, para desidratação lenta. Entre 40 a 50 horas. O que vai ser vendido seco está pronto, é o que vemos nas bancadas das peixarias. Se for para ser vendido demolhado e ultracongelado, pronto a cozinhar, que já representa mais de metade das vendas da Riberalves, ainda há muito a fazer. E tem obrigado ao investimento em tecnologia, já vai em 40 milhões de euros nesse campo. “Tem vindo a crescer pela praticidade. E é o futuro. Porque o processo de demolha em casa não é fácil. As novas gerações não o sabem fazer, ainda têm é a tradição de a mãe demolhar”, realça Ricardo Alves.

Depois da secagem, é cortado em lombos, postas tradicionais, longas, em desfiados, têm mais de 30 tipos de corte, até cortes específicos para restaurantes. Vai à demolha, um mergulho em águas a 7 graus, para não se perderem propriedades. O conceito pode parecer estranho, salga-se antes para depois lhe tirar o sal, mas é isso que lhe dá sabor e textura. São autênticas piscinas, sem fim à vista. “As postas grandes podem demorar cem horas ou mais na demolha, uma pequena pode demorar 30 horas. Se for um desfiado, sete horas”, especifica Vera. “Quando chega aqui o bacalhau tem 16% de sal. Temos de baixar até ao ponto ideal para consumo.” Varia entre 1 e 3% de sal. Mas a maquinaria ainda não é tudo numa indústria onde já se espreita a inteligência artificial, e é hora de provar.

A prova é feita por um trabalhador aleatório que faz seguir o bacalhau para a ultracongelação, onde o ar ganha cor, é branco, e o chão vira pista de gelo. O bacalhau ainda passa por uma água a zero graus, para lhe tirar o gelo e ficar vidrado, aumentar a durabilidade, antes de entrar numa das 15 linhas de embalamento. Em caixas azuis, em sacos, a vácuo. Por peso, espessura, tempo de cura. Em linhas barulhentas, que obrigam a auscultadores de proteção auditiva, coordenadas até às prateleiras das lojas.

O peixe chega e é escalado: tiram-se dois terços da espinha dorsal, limpam-se coágulos e vísceras
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Não é só a fábrica da Moita a trabalhar, também há uma em Torres Vedras, de onde é natural a família, e outra próxima do Barreiro. Ricardo Alves arrisca: “A Riberalves não é o bacalhau mais barato do mercado, mas é seguramente um dos melhores”. Tem 43 anos, é o irmão mais velho, já conta cabelos brancos e perde a noção de estar na maior fábrica mundial de transformação de bacalhau. “Para mim este foi um processo gradual. Quando comprámos esta fábrica em 2003, ela tinha dez mil metros quadrados, hoje tem 50 mil.” Foi crescendo e crescendo. 65% das vendas do grupo são em Portugal, o resto vai para mais de 20 países. Para o Brasil, onde têm escritórios e onde o bacalhau é rei na Páscoa, para África (têm fábrica em Angola), para o mercado europeu da saudade, onde não faltam portugueses emigrados.

Escassez e preço a subir

Mesmo estando o demolhado ultracongelado a ganhar espaço, no Natal, o bacalhau salgado seco ainda é tradição. “E o consumo é menos sazonal do que já foi. Mas nesta época, nos últimos meses do ano, representa um terço das vendas de toda a indústria”, sublinha Paulo Mónica, secretário-geral da Associação dos Industriais do Bacalhau. Num país que consome cerca de “200 mil toneladas em peixe vivo” – 60 mil depois de processado -, o setor assume peso. “Temos à volta de vinte empresas a trabalhar, sobretudo na zona de Ílhavo, junto ao porto, onde está sediada a base da frota portuguesa.” Mas a indústria bacalhoeira estende-se de Guimarães à Moita.

A tecnologia é cada vez mais avançada, mas ainda há muito trabalho manual na fábrica de Ílhavo
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

E toda sofreu com a pandemia. O travão a fundo na restauração e na hotelaria, que levam uma fatia importante, abanou o setor. Já está praticamente reerguido. Aliás, a Riberalves diz que o último mês foi o seu melhor novembro de sempre em vendas. Paulo Mónica subscreve a recuperação. Só que este é ano de escassez e de aumento do preço. Houve menos pesca, não se atingiram as quotas de captura, devido ao medo de uma pandemia que no início do ano ainda ditava fronteiras fechadas. Ficou, segundo os industriais, cerca de 20% de peixe no mar por pescar. E, depois, os tamanhos a vir à costa no verão foram mais pequenos.

A isso, somam-se custos com embalamento, transporte, eletricidade. “Um contentor da China custava-nos quatro mil dólares, hoje custa 18 mil. Um camião da Noruega que custava 4500 euros, hoje custa sete mil. O custo da energia é escandaloso, do cartão, do plástico, tudo subiu”, lamenta Ricardo Alves. As pescas vão ser retomadas em força em janeiro, as expectativas não são boas. Há falta de peixe no mercado e Portugal vai estar a competir com outros países.

Um Sr. Bacalhau de porta no cais

Se viajarmos até Ílhavo, no Cais dos Bacalhoeiros, na Gafanha da Nazaré, o cheiro faz-se anunciar. Uma loja aberta ao público, com o porto aos pés, é cartão de visita do Sr. Bacalhau, Grupo Rui Costa e Sousa & Irmão, a empresa familiar que já vai na segunda geração. Até língua ou bochecha ali se encontra. Também têm loja online, com entregas de Chaves ao Algarve. Aqui, o bacalhau chega todo da Noruega, onde têm duas fábricas. Os navios atracam à porta e entregam 20 mil toneladas de peixe vivo por ano. É na origem, no país escandinavo, que abrem o peixe, fazem a escala e fica a maturar. Só depois é que vem para Portugal.

João Costa e Sousa assumiu o setor da exportação da Sr. Bacalhau em 2007
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

João Costa e Sousa, 35 anos, ainda se lembra dos serões, em catraio, com os pais para embalar o peixe, em Tondela, onde cresceu. Foram o pai e o tio que deram os primeiros passos no bacalhau há 40 anos, acabados de comemorar, herança de um bisavô que vendia peixe fresco de carroça de bois. Hoje, é tudo bem diferente e automatizado. João assumiu o setor da exportação em 2007, que já vale 50% do grupo. Além das fábricas na Noruega, têm três em Portugal, e centros de distribuição nos Estados Unidos e no Brasil. Exportam para todo o Mundo, desde África ao mercado da saudade europeu. “Os emigrantes continuam fiéis ao nosso bacalhau.”

Bacalhau esse que entra pela fábrica de Ílhavo adentro para acabar ali o processo de maturação. Ainda vai ao salão de beleza, como João lhe chama. Tira-se a badana para os asa branca e segue num tapete para calibrar. Separados em caixas enormes. Ora graúdo, ora crescido. Um corrupio, que parece cronometrado e que se faz de mãos no peixe. “Há muito trabalho que ainda só é possível fazer manualmente. E não está fácil arranjar mão de obra, atrair os jovens para esta área.” Também aqui, as mulheres estão em maioria. O bacalhau entra na câmara de secagem, encaixado milimetricamente em paletes. A temperatura varia entre os 20 e os 22 graus, pode ficar a secar de 55 a 120 horas para lhe tirar a humidade. Não há fórmulas exatas. O tempo depende do peso e da espessura. É depois que se corta em lombos, postas, rabo, cabeça. De um carrinho, João agarra num cachaço, estende a mão: “Esta, para mim, é a melhor parte do bacalhau”.

O bacalhau é separado por tamanho em caixas, num trabalho contínuo e rápido de centenas de trabalhadores
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Conhece o nome a todos os funcionários, trata-os por tu, são “família”. Há gente a trabalhar ali há 40 anos, tantos quantos os da empresa que já está a mexer-se para a Páscoa no Brasil. Depois vêm os casamentos no verão. Mas o Natal é o rei do setor. O facto de terem funcionários na Noruega, a acompanhar de perto a pesca, permitiu-lhes criar um pulmão em ano de escassez. “Trouxemos a mesma quantidade, somos uns sortudos por termos lá a fábrica.”

Descem-se as escadas de uma unidade labiríntica, 16 tanques para demolha, cada um leva umas quatro toneladas de peixe. Tiago Lopes dá ares de miúdo, 32 anos, é ali o responsável. Começou na produção há uma década, quando precisava de trabalho. “Empenhei-me e evoluí. Apostaram em mim.” É ele quem prova o bacalhau, avisa carregado de orgulho. “E todos os dias se demolha, sábados, domingos, feriados, isto nunca pára. Seja Natal ou Ano Novo. É a minha segunda casa.” Dali para a congelação, vidragem em água fria e embalamento. O slogan da empresa chama-lhe “um cavalheiro à sua mesa”. E em época natalícia encaixa que nem uma luva.

Factos e Números

5,2 mil toneladas de bacalhau
O total de quotas de pesca para a frota lusa, este ano, nas águas do Atlântico Norte (onde está a espécie Gadus morhua). Não há bacalhau na costa portuguesa e o número representa menos de 10% das necessidades da indústria nacional. O peso é para peixe fresco, que pesa três vezes mais do que o seco.

De onde vem
Perante uma quota da frota portuguesa insuficiente, a indústria importa, sobretudo, da Noruega, Rússia e Islândia. A pesca é sustentável e monitorizada.

Para onde vai
Parte do que se transforma em Portugal é exportado, sobretudo para o Brasil e para o mercado europeu da saudade, com destaque para França. Angola também é importante.

60 mil toneladas de bacalhau
É o consumo em Portugal por ano, somos os maiores consumidores mundiais de bacalhau seco. Estima-se que, só no Natal, se comam entre quatro e cinco toneladas.

Quanto emprega
Só a indústria transformadora emprega mais de 2000 pessoas. E há falta de mão de obra: são precisas mais duas a três centenas de trabalhadores. O setor paga acima da média, mas trabalhar com peixe não é atrativo.

400 milhões de euros
Era o volume de negócios das empresas transformadoras de bacalhau antes da pandemia, que afetou o turismo, as vendas para restauração e hotéis e a exportação. Mas já está quase aos níveis pré-covid.

20% de aumento do preço
O preço aumentou na origem, por se ter deixado muito peixe no mar, o que gerou escassez. E também aumentaram os custos de transporte, energia, embalamento para a indústria.

Refeições pré-cozinhadas
É uma das apostas agora das empresas, que garantem que mantém o sabor, desde bacalhau com natas ao bacalhau à brás ou feijoada de samos de bacalhau.

Dia Nacional do Bacalhau
Ainda não existe, mas os industriais do bacalhau querem criá-lo. A 5 de junho, o dia de 1942 em que o bacalhoeiro português “Maria da Glória” foi afundado por um submarino alemão, durante a II Guerra, e morreram 36 pescadores.